#33InfânciaCulturaSociedade

Todos estão surdos?

por Helena Cunha Di Ciero


editora convidada da edição Amarello Infância

Quer me ver nervosa como mãe e psicanalista que sou – que, por sinal, são as duas coisas que eu mais gosto de ser nessa vida –, é quando vejo criança trocando brincadeira por celular. esconde-esconde por vídeo no Youtube, pega-pega por videogame, boneca por gato tom. Quase morro de desgosto quando vejo um grupo de crianças juntas, cada um no seu tablet, isoladas e sem trocarem entre si, acomodadas numa almofada de sofá, num silêncio de desvitalização que mais me assombra do que aquieta. e me sinto profundamente culpada quando me percebo confortável numa cena dessas.

Olho ao redor, “Todos estão surdos?” como diria Roberto Carlos. Ninguém se entristece com crianças abduzidas por uma tela de celular? talvez eu esteja exagerando, mas sinto uma revolta brutal quando percebo que há um absoluto silêncio na sala onde deveria ter ruídos curiosos de vidas pulsantes que acabaram de começar. Como se nessas horas es- tivesse testemunhando um funeral precoce do pedaço mais colorido da vida: a imaginação.

Eu, que sou calma, saio do sério mesmo. Tiro o celular-alucinógeno, aguento birra e gritaria com xingamentos de “sua chata” e, como num passe de mágica, vejo minha sala virar faroeste, crianças batendo portas, correria, bagunça. Ufa! Eles estão vivos!

Claro que não dá para abrir mão da tecnologia, é um contexto no qual estamos inseridos, mas eu tenho a impressão de que cada vez mais ela é usada como sossega-leão para as crianças. tipo uma chupeta eletrônica. tornando secundário a criatividade, algo extremamente vital cujo potencial é transformador.

No meu álbum de retrato interno da minha vida infantil, estão presentes os lugares em que estive, algumas viagens, a pitangueira da casa da minha avó, a piscina azul, minha escola maternal, minha amiga Ju, mas, principalmente: as brincadeiras.

Cansei de fazer festa de casamento para Barbie, decorar a casa do Ken com propagandas de miniatura de re- vista da editora abril, que seriam usa- das como objeto de decoração na sapateira da minha mãe – que virava um loft chique e charmoso. enquanto isso, minha Barbie dava lindas festas na piscina azul que fazia bomba de espuma. eu mesma nunca fui em nenhuma pool party, mas a minha Barbie era a rainha desse evento, que ocorria todo sábado na minha varanda e durava horas.

Pronto, em dois minutos de texto, meu coração ficou cheio de lembranças num domingo triste de chuva e me vi sorrindo comigo mesma enquanto re- vivia um pedaço da minha história navegando pelas minhas memórias. Para isso serve a imaginação, traz um conforto para a gente mesmo, uma sensação de aconchego e acolhimento. O que me leva à seguinte reflexão: do que será que serão feitas as memórias dessa criançada que vive embebida no mundo virtual? Será que suas saudades serão feitas de pixel?

Não sei. Sei que, lá de onde eu venho, brincadeira é coisa séria. Para nós, psicanalistas, o brincar nada mais é do que o trabalho da criança. isto é, brincando ela elabora situações importantes, conflitos emocionais, questões, faz pesquisas sobre seu corpo, aprende a comemorar a vitória de um jogo assim como a resignação necessária para li- dar com as perdas. (Pedaço que é difícil até para os adultos, imagine para as crianças).

De acordo com Winnicott, em seu texto o brincar e a realidade, é através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Portanto, é a partir da brincadeira que a criança se adapta à realidade. É como se o brincar fosse uma forma da criança cuidar de si, de se tratar.

Certa vez, uma paciente contou-me que, quando mudou de país, encontrou no lixo uma casa de Barbie, com a qual brincava para dar conta da saudade que sentia da casa de onde vinha. Claro que isso não era feito de forma intencional, mas, de alguma forma, ela escolheu inconscientemente um objeto para dar conta de uma angústia.

Freud, observando seu sobrinho jogar um carretel, percebeu que nessa brincadeira havia uma comunicação inconsciente; o carretel ia e voltava, assim como a mãe que saía e voltava. e nessa brincadeira havia, portanto, uma elaboração de uma ausência. Melanie Klein foi quem começou a entender que era possível fazer um trabalho psicanalítico com as crianças entendendo o brincar como uma comunicação de questões inconscientes. e começou a trabalhar “ouvindo” as brincadeiras dos pacientes a partir da escuta psicanalítica.

A noiva do caubói era você além das outras três

A brincadeira é território da fantasia e, por isso, deve ter a marca da liberdade para que sentimentos possam ser expressos em sua totalidade. isto é: tanto os bons, quanto ruins. Sua finalidade é dar conta de nosso desamparo. Por isso o nome: brincadeira. Ponto.

Com isso, gostaria de colocar algo que considero crucial: o brincar precisa ser livre. trata-se do lugar do sonho, onde tudo pode acontecer. É possível ser casado com três, ser bedel e também juiz. Não é preciso haver uma coerência, um sentido; este é dado pela própria criança, que é quem governa e faz a constituição do território do brincar: E, pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz.

Não se censura a brincadeira. Nós, adultos, vemos uma criança brincando com uma arma de plástico e nos assustamos: estaríamos incitando a violência? Perguntaria uma tia no almoço de Natal. Pelo contrário, para a criança, a espingarda pode ter outra representação, assim como a espada. Pode ser algo do masculino, e não do ódio. Não adianta olhar para as crianças com nossos olhos de projeção. mui- tas vezes, a agressividade está em nós, que os enxergamos como nossa extensão.

Isso significa que precisamos estar atentos, pois, ao reprimir um afeto, podemos estar prejudicando uma criança. Compreendemos a mulher adulta que pode ficar com raiva do ex e picar as fotos, mas as coitadas das crianças que acabaram de ganhar um irmãozinho não podem quebrar a cabeça da boneca-bebê quando raivosas. Nós, maiores de 18, podemos nos deliciar com um filme do Tarantino se vingando dos nazistas, mas as nossas crias têm que ser essencialmente boas, puras e ingênuas. Que falta de generosidade a nossa. Exigir das crianças algo muito civilizado é, na verdade, a grande violência. Criança dá trabalho, ponto. e, por trabalho, me refiro ao trabalho psíquico.

Mesmo os contos de fadas são repletos de sentimentos hostis, assustadores, angustiantes. de que outra maneira poderíamos apresentar o mundo real se não usássemos esses símbolos para as crianças?

Para lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim

Recentemente, revi “a noviça rebelde” com meus filhos e me dei conta de que o filme é, de fato, atemporal e genial ao mesmo tempo, pois é uma maneira muito delicada de apresentar para as crianças o nazismo. assim como a bruxa da branca de Neve é a encarnação da inveja, e o Capitão gancho, a luta contra o tempo, já que o crocodilo tic-tac refere- se à dor do envelhecimento. A grande questão das histórias é que elas possibilitam a reflexão, a partir da famosa moral da história.

Por isso, vale pensar que, quando proíbo uma brincadeira, estou proibindo que a criança reflita sobre algo que a angustia, que elabore um sentimento. Ou seja: estou represando um afeto que pode a in- toxicar no futuro. É que aquilo que é reprimido tende a voltar com muita força, de acordo com Freud (obviamente, excluo aqui brincadeiras que colo- quem a criança em risco).

É também em “Sobre o Narcisismo” que o pai da psicanálise coloca algo muito importante: os pais veem no filho um reflexo de si mesmos e, por isso, esperam de suas crias algo muito puro, bom e sem maldade, algo asséptico. As crianças seriam condenadas, então, à reparação de seu narcisismo perdido, ou seja, têm como obrigação a realização dos desejos que lhe foram negados pela realidade; a menina deve ser a reencarnação do sonho de princesa da mãe, enquanto o filho deve ser o jogador de futebol que o pai não conseguiu ser. Só que criança também é gente, e precisa, acima de tudo, ser compreendida.

Hoje, o que vemos é uma higienização da infância. Crianças devem ser seres puros, iluminados, o lobo mau é lobo bom, e por aí vai. então, essa criança acorda adolescente do sonho da Bela Adormecida, furando o dedo na dura realidade. e se assusta. e sangra.

Contudo, já dizia um certo iluminista que o homem é o lobo do homem. e, às vezes, os adultos agem mais como Saturno, que devora o próprio filho, do que como as fadas-madrinhas, que lhes oferecem o encanto de viver.


Originalmente publicado na edição Infância
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