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Pontes sobre abismos

por Aline Motta

Este é um projeto sobre a vida.

Se tudo que fazemos na vida é atravessar abismos, este projeto é sobre pontes. Pontes de palavras e imagens, pontes de busca por entendimento. Pontes sobre o atlântico.

É um projeto que fala sobre a minha família, mas poderia falar também da sua.

A história se desenrola a partir de um segredo. Um segredo de avó para neta. O que, na história de uma vida, deve ser lembrado e o que deve ser esquecido, como curamos traumas pessoais, familiares e coletivos?

Uma vez ouvi, numa palestra do intelectual paulistano José Fernando Peixoto de Azevedo, que “o transe pode ser vivido como uma forma de convívio entre o presente e o passado. Uma presentificação do passado, que se dá como uma conversa que atravessa corpos. Quando você vive uma experiência de transe, você escuta vozes de um passado que voltam, porque reclamam justiça.”

Um segredo comunica algo indizível, mas, se sou eu a portadora dele, devo revelá-lo sob que circunstâncias?

Não é uma coincidência que a família da minha bisavó tenha vindo de Vassouras. A população escravizada da cidade, por conta das lavouras de café, foi a maior da província do Rio de Janeiro e provavelmente a maior do país. Em 1850, a população de Vassouras era totalizada em 28.638 habitantes; entretanto, 19.210 eram escravizados e somente 9.428 eram pessoas livres.

Também não acredito ser coincidência que minha bisavó, Mariana, tenha recebido o mesmo nome de Mariana Crioula, cúmplice de Manuel Congo. Eles foram os líderes de uma das maiores rebeliões de escravos já ocorrida na região, a revolta de Vassouras, ocorrida em 1838. Manuel Congo foi enforcado e não teve o corpo sepultado. Mariana foi poupada. Os demais rebelados voltaram ao cativeiro e, como pena, receberam 650 açoites, parcelados em três anos.

Quem são meus pares? Para quem eu faço arte e para quê?

Quem legitima o trabalho artístico no mundo e no mercado de arte legitima também esse tipo de investigação?

Quem veio dessa violenta “mestiçagem” e procura o seu lugar, a todo tempo se vê em posições de opressão, mas também de privilégio. A pele mais clara nos faz permeáveis a esses diferentes espaços de existência. A partir desse ponto de vista, entre-mundos, o que pode vir à tona quando estamos a procura de nós mesmos?

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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