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As Linhas de Desejo

Duas linhas se cruzam e marcam um ponto na escala do território; as mãos continentais do urbanista, o continente como projeto. Brasília “nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse.”

O povo vindo, as máquinas abrindo esplanadas, a envergadura resultante com asas de dimensões sobre-humanas, as distâncias de incalculável caminhar, insolação.

A cidade disposta sobre a terra vermelha. Quais gestos seriam necessários para, como pessoa de tamanho de gente, se apossar dessas extensões?

Hoje, matéria céu, matéria chão, blocos (como aqui se chamam e se apresentam prédios). Quilômetros da massa de árvores e concreto que não ultrapassam a altura de 7 pavimentos, cidade-parque, homogênea, geometria dispersa. Quem aqui mora se exercita ou passeia seu cão pelas largas calçadas que circundam cada quadra do plano piloto. Com blocos elevados do chão, sobre pilotis, já se previa a dita “promenade”; passear livremente em qualquer direção na cidade, deslocar-se como modo de apreciar a arquitetura, como propôs Corbusier, imaginando a liberdade de circulação do homem moderno. Cada caminho único e subjetivo numa cidade permeável.

A paisagem de Brasília se apresenta dinâmica para as velocidades de automóvel. A pé, os elementos distantes se modificam lentamente, e cada descampado pede muitos passos, minutos. Sem os encontros das calçadas de cidades espontâneas, o vazio acolhe buracos de coruja, céu extenso. E cortam os extensos gramados, ora verdes, ora secos, veias de um vermelho escuro. Terra reaberta por pés no movimento diário do chegar e partir pelo caminho mais curto. As linhas de desejo são narrativas de vida real na cidade-abstração. São marcas dos passos das mulheres que chegam de fora nas manhãs tendo percorrido longas distâncias em transportes públicos. Se espalham a partir dos pontos de ônibus: sobem os blocos para servirem os apartamentos, andam até as lavanderias, repartições.

A carne aberta dos caminhos de terra amanhece por todo o plano; é testemunha e guia dos gestos de quem realmente caminha a cidade. Assinalam os lugares de quem ali não tem lugar. Apressando-se para a hora do ponto, a hora do ônibus, toma-se posse da paisagem? Surpresa para o urbanismo moderno, é a premência, e não a “promenade”, que cria e repete os caminhos que marcam a cidade-parque.

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Há 5 anos, Diego Bresani vem catalogando de forma constante e sistemática as linhas de desejo de Brasília. O processo é lento e analógico (ele usa uma máquina de grande formato 4×5).

Seu desejo ao fazer esses registros é deixar uma importante reflexão sobre o urbanismo da cidade depois de 60 anos de sua construção. O que deu certo? O que deu errado no projeto modernista? Problematizando a lógica da cidade que parece ter sido planejada para automóveis. Entre as largas avenidas planejadas surgem caminhos espontâneos, que não foram planejados. Linhas estreitas, feitas na terra. Abre-se um espaço limpo onde os pedestres preferem passar. São esses caminhos que interessam a ele. O rastro de caminhantes que subvertem a ordem modernista; uma homenagem às pessoas que andam, que ocupam e que ressignificam a cidade a partir de seus desejos.

Ayla Gresta é arquiteta e urbanista pela Universidade de Brasília. Ocupa a cidade através de frentes plurais e interligadas: música, performance e intervenção urbana, e compartilha suas vivências com visitantes em derivas pela cidade patrimônio e viva.

Originalmente publicado na edição Travessia

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