#Terra: Especial 10 anosAmarello Visita

Amarello Visita: Marcus Volpe

por Mariana Tassinari

Talvez por ser um país formado por rios, lagos e mares, a relação do Brasil com a água permaneça uma incógnita. Enquanto o mundo preocupa-se com o que será feito dela nas próximas décadas, o país que detém 11% do manancial potável do planeta trata o mais valioso dos recursos naturais como uma dádiva inesgotável. Para a edição Terra, o Amarello Visita conversou com o engenheiro e fundador da DNA Dragagem, Marcus Volpe, sobre os processos envolvidos na revitalização dos espaços hídricos, como o rio Pinheiros, em São Paulo, e a Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Conversamos também sobre as demandas do seu ofício e tiramos a temperatura de como anda o atual estado da consciência ambiental da nossa sociedade e dos nossos governantes.

Você acabou falando de vários projetos perto do estado de São Paulo, e pelo resto do Brasil?

Estamos terminando uma dragagem pequena, junto a um parceiro nosso, em Xique-Xique, na Bahia, para captação de água, que é um problema sério lá. Em 2014 para 2015, fomos contratados pela Codevasf para fazer uma dragagem com todo esse equipamento de sucção e recalque para dragar o rio São Francisco. Eram 150 quilômetros de dragagem no rio. Nessa época, teve uma seca grande, que baixou o nível total do rio e o fez regredir completamente a um fiapo de água. Você imagina, um rio em que se transportava algodão, muitas pessoas, um rio de navegação longitudinal, que serve para travessia da região, e, de repente, por conta da baixa da água, você não consegue mais navegar. Então pararam as estradas e as cidades todas. Não se consegue mais captar água para a população. Isso foi em 2014. Agora, estamos acabando de fazer, em Xique-Xique, um canal de captação desse tipo também, que é justamente o contexto do rio baixo, assoreado, e a cidade não consegue mais ter volume de água, então você precisa abrir um caminho para levar água até o ponto de captação onde eles a bombeiam. Essa obra do São Francisco foi entre Penedo, no Alagoas, e Neópolis, no Sergipe. Penedo é uma cidade maravilhosa, vale a pena conhecer. É uma cidade antiga, a arquitetura está toda preservada, tudo rua de pedra, na beira do São Francisco. E ali você está a 60 quilômetros do mar. Você pega uma estradinha, ou pega um barco lá mesmo, e desce até o mar, passando por milhares de ilhazinhas até chegar na foz do São Francisco. É maravilhoso.

Além dessa obra, há uns seis anos, fizemos a dragagem do rio Capibaribe, no Recife. Lá, a ideia era implantar uma hidrovia de transporte. Ganhamos duas obras lá. Uma para fazer a dragagem, uma obra grande, muita coisa para tirar de material para poder deixar o rio navegável, e outra para fazer as estações hidroviárias, porque seria um sistema de transporte público mesmo, como um ônibus, com estações para o pessoal entrar no barco, etc. Mas foi na época que o Eduardo Campos despontou como adversário da Dilma. Era dinheiro federal. Aí o governo federal suspendeu o dinheiro, e o governo de Pernambuco pagou… Acho que 30% era estadual e 70% federal. Aí ele gastou o dinheiro dele achando que ia conseguir, só que não conseguiu pegar o dinheiro federal, então não conseguiu acabar a obra. Ficou tudo pela metade.

Qual é a realidade das águas brasileiras, e como vocês percebem isso como oportunidade?

Tem um trabalho grande, que estamos fazendo e ainda não conseguimos tirar do papel, que mostra bem como é a situação dos rios brasileiros. No Mato Grosso do Sul, tem um rio que se chama Taquari. Ele é o rio do Pantanal. E o que é o Pantanal? É uma região em que esse rio transborda alguns meses por ano, criando uma biodinâmica muito específica e fantástica. O que aconteceu? Com a pecuária extensiva, a cidade abriu uma área de floresta, desde o Mato Grosso, ao norte, até chegar em Coxim, sem o menor tipo de cuidado, sem fazer curva de nível, etc. Isso significa que qualquer chuva lavava as terras e levava para o rio, e esse rio foi assoreando. Hoje, o Taquari não existe mais. O Pantanal está permanentemente alagado. O Pantanal não pulsa já faz alguns anos por conta disso. O Taquari encheu tanto de areia que o rio achou outro lugar para correr, que, na verdade, não é um lugar – não é que o rio mudou de lugar, ele se espalhou. E está sempre alagado. Isso gerou um problema ecológico e social gigante, porque os fazendeiros que tinham terras lá viram o pasto morrer. Por volta de 2009, fizemos uma campanha com o nosso dinheiro. Durante 10 dias, contratamos uma empresa junto à universidade para poder mapear todo esse assoreamento, e desenvolvemos um projeto que levamos para o governo federal, na época da Dilma, através do senador que estava encabeçando isso, o Delcídio do Amaral, que depois foi preso, e o projeto parou. Em janeiro, começaram a falar em retomar o mesmo trabalho que a gente fez, só que muito mais profundo, para gerar um projeto para desassorear esse rio. Há dezenas de rios iguais ao Taquari pelo Brasil, que estão completamente assoreados por conta da intervenção humana direta ou nas margens, como a falta de mata ciliar. Uma das coisas mais importantes para um rio é manter sua mata ciliar, e no Brasil isso é destruído porque não existe uma legislação pesada contra isso. As intervenções das barragens também causam problemas semelhantes, e acabam matando o rio em determinada altura. A realidade dos nossos rios é igual a qualquer outra realidade brasileira. Ela é igual ao péssimo saneamento, igual às péssimas estradas. Os rios não fogem a esse padrão.

Esse é um caso de projeto que partiu de vocês, certo?

Sim. O problema chegou até nós, e o meu sócio, o Andrelino, foi em diversas reuniões, fez audiência pública, conversou com o pessoal. Ele se reuniu com os fazendeiros, com os ribeirinhos, com a população diretamente impactada. Ele foi responsável mais na parte social do projeto, e eu ocupei a parte técnica, de desenvolver a solução, de ir lá, pesquisar e fazer a campanha, por exemplo.

A maior parte dos projetos chegam através das empresas que são contratadas pelo governo?

Exatamente, é muito mais simples se associar com uma grande empresa que vai prestar o serviço para o governo do que arriscar envolver-se diretamente. Os últimos anos foram complicados, chegamos a ficar quase sem funcionários. Você começa a não poder pagar as pessoas e tem que mandá-las embora, porque o dinheiro vai para outro ralo, que normalmente é uma obra que está rodando e não está recebendo, aquelas coisas. Então, até para mitigar risco, para nós, é muito bom. A nossa empresa é menor, mas durante a crise fomos adquirindo máquinas, o que qualificou o nosso parque de equipamentos. Hoje, conseguimos operar essa estrutura com uma folha de pessoal reduzida, o que diminui o nosso risco. Na obra da Pampulha, por exemplo, deve-se ter umas 60 pessoas trabalhando, e nenhum dos funcionários está no meu nome, estão todos no do nosso parceiro.

Qual é o impacto ambiental e social que a DNA pode proporcionar?

A água é um bem muito valioso. A partir do momento em que você consegue fazer uma cidade captar água, obviamente acaba-se gerando um impacto social gigante. Ou, ainda, ao permitir que uma balsa atravesse um rio, fazendo com que o transporte de carga e pessoas seja possível, diminuindo o valor do frete na região, barateando a comida e melhorando a qualidade de vida das pessoas. Em alguns casos, inclusive, podemos proporcionar uma navegação longitudinal, ou seja, tiramos caminhão da estrada, pois a carga pode ir pelo rio, pela hidrovia. Tudo isso é muito importante. A Transpetro fez um projeto gigante para escoar óleo diesel para dentro do estado e tirar etanol, através do modal hidroviário. Era uma obra de uns 500 milhões de reais, mas veio a Lava Jato e foi suspensa. Era tudo superfaturado. Em São Paulo, o governo investe de forma muito pontual. No rio Tietê tem uma dragagem, só que, de repente, acaba o dinheiro e fica um ano parada, depois volta. O resultado é que poderíamos ter uma navegação fenomenal para tirar lixo da cidade, para circular material de construção, como em Paris, por exemplo. Em Paris, areia só entra através de balsa, não tem caminhão circulando no meio de uma marginal, com tijolo e materiais pesados. O lixo também é retirado por balsa. A mesma coisa em Nova York. Você leva tudo isso para um posto do lado do rio, joga dentro, e está resolvido.

E tem também uma coisa muito bacana, que é o seguinte, quando o Andrelino finalizou a obra do rio Tietê – a dragagem, o derrocamento e a calha do rio –, ele trouxe um navio para cá. Esse navio para 200 pessoas acabou sendo usado, por um tempo, para fazer espetáculos do Teatro da Vertigem. E também foi usado para difundir educação ambiental. Havia o Instituto Navega São Paulo, bancado por nós na época, e recebíamos as escolas públicas e as crianças. Só que com o dinheiro não dava para fazer tudo, então parou. Aí a Sabesp começou a alugar da gente para levar habitantes de comunidades que não estavam ligados a rede de esgoto, o que, pela nossa legislação, não é compulsório. Se você não está num esgoto, se não quiser se ligar num esgoto, você não é obrigado a pagar a taxa. Então eles levavam essas pessoas, pessoas mais pobres, mais simples, e traziam para o rio, para dar uma volta de barco, e mostravam a realidade do rio. Isso impactava porque demonstrava o resultado de não estar ligado ao esgoto, de como o esgoto prejudicava o rio. Era muito incrível, porque, na saída do barco, havia a opção de assinar para se ligar ao esgoto, e 80% das pessoas aceitavam, porque entendiam qual era a essência do rio.

Incrível, isso. Educação é tudo.

É tudo. E um dos maiores problemas que a gente tem hoje nos rios Tietê e Pinheiros é que o rio é tipo um alien da população. O mais próximo que a gente passava dele até uns anos atrás era na Marginal, a milhão por hora, nos nossos carros, ou presos no engarrafamento. Hoje pelo menos tem a ciclovia, então você até chega um pouco mais perto. Mas você muda completamente a perspectiva ao entrar dentro de um barco e navegar pelo rio. Tanto que agora estamos com um projeto que vamos levar para o governo estadual, de tirar o barco do Tietê e botar no Pinheiros e ver se começamos a navegar no Pinheiros, porque o Doria está querendo fazer o rio Pinheiros voltar a viver. Ele, através da iniciativa privada, vai investir quase um bilhão de reais em estações de tratamento de esgoto ao longo do Pinheiros, para tratar esses córregos. Porque captar todo esse esgoto, botar num duto submerso, que são túneis iguais aos do metrô, túneis de esgoto gigantes, é muito caro, demora muito tempo. Então, paliativamente, vamos tratar os córregos antes que eles caiam no rio. São duas ou três usinas de tratamento de esgoto em todos os córregos, e isso vai, pelo menos, estancar o problema do rio. Junto com isso, tem o serviço de limpeza e desassoreamento. É muito lixo flutuante, mas o que assoreia mesmo é areia, areia de construção. Você faz uma obra, chove, corre areia, e sempre acaba no rio. São milhares e milhares de metros cúbicos de areia por ano entrando na água. Vamos ver. Tomara que dê certo e possamos voltar a trabalhar com o barco.

Algum desses projetos se transformou em uma experiência marcante?

Acho que o mais marcante foi uma dragagem no Rio de Janeiro, em um canal que se chama Canal do Cunha. Na época, tinham acabado de tirar a Faixa de Gaza, que é uma favela ali atrás da Fiocruz. Depois que chegássemos na Fiocruz, passando embaixo da Avenida Brasil, entraríamos num segundo trecho da obra que era dentro da favela da Maré. Uma das coisas mais marcantes que vivenciei foi a primeira vez que eu fui lá e, para entrar na Maré, embarquei em um carro queimado, e tinha um garoto de uns 13 anos com um fuzil encostando no chão, porque era maior do que ele. O cliente teve de avisar a comunidade e os traficantes que iríamos lá. Foi um choque gigante. E depois, na sequência, fiquei convivendo com esse pessoal por seis meses. Então, de repente, o traficante falava: “Ô engenheiro, vem cá, vamos jogar bola hoje”, e aí eu montava na moto do cara e ia jogar bola numa quadra de futebol de grama sintética que fizeram lá dentro, todo mundo tomando cerveja cheio de fuzil e revólver, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Acho que essa foi a experiência mais marcante desse trabalho – não pelo trabalho em si, mas por conta das condições. Quando os caminhões chegaram, caminhões grandes para carregar os barcos, tivemos que quebrar as barreiras de concreto que foram construídas na Maré para a polícia não entrar. E em seguida, tivemos que reconstruí-las. É uma coisa de louco. Lá era uma região de curtume também. Acho que os curtumes jogavam o couro que não dava muito certo lá, e aquele material ficava apodrecendo. Às vezes, tirávamos toneladas de couro podre. Tem de tudo. Acho que isso é o que eu mais gosto desse trabalho. Uma hora você está na favela e, em seguida, está em Neópolis para fazer a dragagem de Penedo a Neópolis. Passa a morar em cima de um posto de gasolina, no único hotel da cidade, dormindo em uma cama que não tem nem colchão, sem ar-condicionado. Lembro que às 3h30 começava a clarear a ponto de às 4h da manhã não aguentar ficar no quarto. Então você muda a sua rotina, e passa a dormir às 19h, porque está acordando às 4h da manhã… Isso também é muito gostoso.

E qual a sua frequência de visitas em uma obra?

Eu vou na obra para implantar. Depois, vou para acompanhar. Tem um momento de imersão na obra, no começo, que chamamos de mobilização, quando levamos e montamos os equipamentos para fazer o projeto começar a rodar. Depois disso, eu vou uma ou duas vezes por mês, geralmente quando dá algum problema ou para fechar medição, discutir alguma coisa com quem está lá, ajustar algo, etc. Vou no começo da obra e retorno para São Paulo. Se passar três dias em cada obra e tivermos dez obras, isso dá um mês. Então eu acabo rodando por todas elas e ficando um pouco aqui no escritório em si. Tanto que meu escritório é uma salinha pequena, está entulhado de coisa.


Originalmente publicado na edição Terra

Assine e receba a revista Amarello em casa